Artigo de autoria de Marcos Antônio Siqueira da Silva - Professor de direito processual penal III da FAP e defensor público
INTRODUÇÃO
O título deste artigo faz alusão ao filme brasileiro que muito sucesso angariou junto ao público, quando exibido nos cinemas, ano passado, retratando o batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, de operações especiais, conhecido como BOPE.
Mereceu da quase unanimidade daqueles que o assistiram aplausos e elogios, não tanto pela qualidade da fotografia ou roteiro, mas pelas ações dos policiais, que barbarizavam os malfeitores que enfrentavam. Um exemplo de como deveriam ser tratados, na realidade, todos os malfeitores, todos os transgressores da lei e da ordem.
FICÇÃO E REALIDADE
Após os elogios e aplausos para a ficção, representada pelas cenas marcantes e chocantes do filme, a realidade não recebeu senão indignação e reprovação, veementes, também unânimes, quando policiais militares em perseguição a veículo de criminosos, também no Rio de Janeiro, com troca de tiros pelas ruas, balearam e mataram uma criança, de nome João, de tenra idade.
Os fatos, já esclarecidos pela investigação policial, demonstraram que os dois policiais militares, envolvidos na perseguição aos criminosos em fuga, confundiram o veículo em que João, uma irmã e a mãe trafegavam, pela mesma rua, e que estacionara para dar passagem à viatura policial, como aquele no qual estavam os malfeitores.
A abordagem ao veículo da família emulou o filme TROPA DE ELITE, pois sem que se tivesse qualquer precaução, ambos os policiais militares se aproximaram “barbarizando”, com repetidos e certeiros disparos ao automóvel, perfurando-o em todos os pontos onde se encontravam as pessoas nele abrigadas. Ainda que a infeliz e desesperada mãe tentasse, aos gritos e pondo para fora do carro objetos de uso das crianças, na vã tentativa de mostrar a presença dessas no veículo, nada impediu a tragédia – João foi atingido e morreu.
A reação dos policiais militares foi clássica: aos gritos de “sujou, sujou”, evadiram-se do local, para logo mais inventarem uma desculpa, também clássica, de que foram recebidos a bala. Não fosse câmera de vigilância na rua, desmascarando-os, talvez até “colasse” a clássica desculpa. Só faltou terem colocado uma arma na mão da criança morta, com a numeração identificadora raspada, para tornar verossímil a desculpa de que agiram em legítima defesa, respondendo ao meliante que revidou.
A LIÇÃO DESSE EPISÓDIO
Essa cena trágica da realidade brasileira, em face do cotejo com o ocorrido na ficção retratada no filme, faz-nos refletir. Por que a sociedade brasileira aplaudiu as cenas do filme, entendendo que a ação do BOPE é correta, diante da barbárie dos criminosos, e indignou-se com a morte de João?
Não se quer que a morte de João seja aplaudida, não, de forma alguma.
A questão é que a ficção do filme retrata a realidade, exemplo da qual a morte de João é apenas mais um caso. E a realidade mostra que a ficção não deveria ter sido aplaudida de modo algum. Nada no filme mereceria elogio – exceto o roteiro, a fotografia, o desempenho dos atores, a excelente direção, produção, ou seja, os elementos intrínsecos à arte do cinema.
O filme deveria ser utilizado para que a sociedade brasileira fizesse uma ampla discussão sobre o modo de atuação de suas polícias, tanto a civil quanto, em especial, a militar. Esta por ser aquela que tem, constitucionalmente, a atribuição de policiamento ostensivo e garantidora da ordem pública, no dia-a-dia, nas ruas e demais logradouros públicos.
O filme deveria ser o elemento desencadeador de análises sobre a formação e preparação do policial militar, para que possa ir para as ruas, no desempenho de sua nobre função de garantidor da ordem pública; como são os currículos das escolas de formação policial militar (e também policial civil); como são realizados treinamentos com a reprodução de situações críticas, aprimorando-se as técnicas corretas de abordagem; o treinamento de uso de armas de fogo, para garantir bons atiradores, que visem o alvo tentando preservar a vida, ao buscarem atingir partes não vitais.
O filme deveria ser um ponto de inflexão para a sociedade, a fim de entender qual o policial militar que quer fazendo a sua segurança. Se aquele que age como os personagens do filme, violento e brutal, senhor absoluto da vida ou da morte, que numa abordagem de pessoas perseguidas chega atirando, sem dar chances para a rendição, para a identificação do perseguido e, assim, poder esclarecer se está frente ao criminoso ou do cidadão de bem, que, equivocadamente, calhou de se encontrar no lugar errado.
Os exemplos de ações policiais desastradas são inúmeros e se sucedem constantemente. No mesmo Rio de Janeiro, há poucos meses, um cidadão foi vítima de roubo, o conhecido “seqüestro relâmpago”, estando no banco do carona de seu próprio veículo, com o criminoso ao volante, quando a polícia militar iniciou perseguição aos mesmos.
A ficção tornou-se realidade mais uma vez, pois numa troca de tiros o criminoso foi baleado e morto, e, pior, juntamente com a vítima. E pior ainda aconteceu, porque, ao invés dos policiais militares preservarem o estado em que ficou o veículo e vítimas, para uma perícia técnica, e tentarem identificá-los, ambos, criminoso e vítima, foram retirados do local, como fardos de lixo, rebolados num rabecão, e levados a um hospital (nem levaram ao IML). Lá chegando, já foram apresentando a clássica versão: meliantes mortos em troca de tiros.
Como a vitima tinha se comunicado com o cônjuge nos instantes iniciais do roubo, essa versão foi refutada de modo absoluto em poucas horas.
Quais as providências que o caso teve por parte das autoridades superiores do Rio de Janeiro? Os policiais militares foram elogiados, pela pronta ação, escusando-se-lhes de qualquer responsabilidade, sendo a inditosa vítima um efeito colateral, naquilo que o governador e seu secretário de segurança definem como uma política de segurança eficaz, de combate à criminalidade, onde, se houver necessidade, o confronto ocorrerá.
Contudo, tais confrontos não têm tido o resultado que a sociedade espera e almeja, isto é, a sua segurança e proteção, por que o crime recrudesce em intensidade e os agentes de segurança passam a ser causa de mortes ou lesões incapacitantes.
CONCLUSÃO
A segurança pública que precisamos é aquela que seja realizada dentro das normas legais, destinadas a garantir a incolumidade de todos, sem distinção entre cidadãos de bem e malfeitores, onde os agentes – policiais militares e civis – sejam preparados, treinados e capazes para isso.
Onde as abordagens de qualquer pessoa, desarmada ou armada, priorize a captura para esclarecer os fatos e garantir uma ação do judiciário, na qual a atuação policial e o processo penal tenham todas as garantias de respeito à dignidade da pessoa humana, dos princípios da legalidade, publicidade, moralidade, ampla defesa, contraditório e decisão fundamentada e justa.
Haverá confrontos, infelizmente, nos quais o policial militar terá, e deverá reagir, sim, mas no interesse da sociedade, e para isso, deverá estar bem treinado para que seus disparos sejam eficazes e causem o dano imprescindível e absolutamente necessário, sem que outros Joãos venham a ser vitimados, perdidos para sempre do convívio familiar, onde só o pranto e a revolta contra a polícia militar lembram sua morte.
INTRODUÇÃO
O título deste artigo faz alusão ao filme brasileiro que muito sucesso angariou junto ao público, quando exibido nos cinemas, ano passado, retratando o batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, de operações especiais, conhecido como BOPE.
Mereceu da quase unanimidade daqueles que o assistiram aplausos e elogios, não tanto pela qualidade da fotografia ou roteiro, mas pelas ações dos policiais, que barbarizavam os malfeitores que enfrentavam. Um exemplo de como deveriam ser tratados, na realidade, todos os malfeitores, todos os transgressores da lei e da ordem.
FICÇÃO E REALIDADE
Após os elogios e aplausos para a ficção, representada pelas cenas marcantes e chocantes do filme, a realidade não recebeu senão indignação e reprovação, veementes, também unânimes, quando policiais militares em perseguição a veículo de criminosos, também no Rio de Janeiro, com troca de tiros pelas ruas, balearam e mataram uma criança, de nome João, de tenra idade.
Os fatos, já esclarecidos pela investigação policial, demonstraram que os dois policiais militares, envolvidos na perseguição aos criminosos em fuga, confundiram o veículo em que João, uma irmã e a mãe trafegavam, pela mesma rua, e que estacionara para dar passagem à viatura policial, como aquele no qual estavam os malfeitores.
A abordagem ao veículo da família emulou o filme TROPA DE ELITE, pois sem que se tivesse qualquer precaução, ambos os policiais militares se aproximaram “barbarizando”, com repetidos e certeiros disparos ao automóvel, perfurando-o em todos os pontos onde se encontravam as pessoas nele abrigadas. Ainda que a infeliz e desesperada mãe tentasse, aos gritos e pondo para fora do carro objetos de uso das crianças, na vã tentativa de mostrar a presença dessas no veículo, nada impediu a tragédia – João foi atingido e morreu.
A reação dos policiais militares foi clássica: aos gritos de “sujou, sujou”, evadiram-se do local, para logo mais inventarem uma desculpa, também clássica, de que foram recebidos a bala. Não fosse câmera de vigilância na rua, desmascarando-os, talvez até “colasse” a clássica desculpa. Só faltou terem colocado uma arma na mão da criança morta, com a numeração identificadora raspada, para tornar verossímil a desculpa de que agiram em legítima defesa, respondendo ao meliante que revidou.
A LIÇÃO DESSE EPISÓDIO
Essa cena trágica da realidade brasileira, em face do cotejo com o ocorrido na ficção retratada no filme, faz-nos refletir. Por que a sociedade brasileira aplaudiu as cenas do filme, entendendo que a ação do BOPE é correta, diante da barbárie dos criminosos, e indignou-se com a morte de João?
Não se quer que a morte de João seja aplaudida, não, de forma alguma.
A questão é que a ficção do filme retrata a realidade, exemplo da qual a morte de João é apenas mais um caso. E a realidade mostra que a ficção não deveria ter sido aplaudida de modo algum. Nada no filme mereceria elogio – exceto o roteiro, a fotografia, o desempenho dos atores, a excelente direção, produção, ou seja, os elementos intrínsecos à arte do cinema.
O filme deveria ser utilizado para que a sociedade brasileira fizesse uma ampla discussão sobre o modo de atuação de suas polícias, tanto a civil quanto, em especial, a militar. Esta por ser aquela que tem, constitucionalmente, a atribuição de policiamento ostensivo e garantidora da ordem pública, no dia-a-dia, nas ruas e demais logradouros públicos.
O filme deveria ser o elemento desencadeador de análises sobre a formação e preparação do policial militar, para que possa ir para as ruas, no desempenho de sua nobre função de garantidor da ordem pública; como são os currículos das escolas de formação policial militar (e também policial civil); como são realizados treinamentos com a reprodução de situações críticas, aprimorando-se as técnicas corretas de abordagem; o treinamento de uso de armas de fogo, para garantir bons atiradores, que visem o alvo tentando preservar a vida, ao buscarem atingir partes não vitais.
O filme deveria ser um ponto de inflexão para a sociedade, a fim de entender qual o policial militar que quer fazendo a sua segurança. Se aquele que age como os personagens do filme, violento e brutal, senhor absoluto da vida ou da morte, que numa abordagem de pessoas perseguidas chega atirando, sem dar chances para a rendição, para a identificação do perseguido e, assim, poder esclarecer se está frente ao criminoso ou do cidadão de bem, que, equivocadamente, calhou de se encontrar no lugar errado.
Os exemplos de ações policiais desastradas são inúmeros e se sucedem constantemente. No mesmo Rio de Janeiro, há poucos meses, um cidadão foi vítima de roubo, o conhecido “seqüestro relâmpago”, estando no banco do carona de seu próprio veículo, com o criminoso ao volante, quando a polícia militar iniciou perseguição aos mesmos.
A ficção tornou-se realidade mais uma vez, pois numa troca de tiros o criminoso foi baleado e morto, e, pior, juntamente com a vítima. E pior ainda aconteceu, porque, ao invés dos policiais militares preservarem o estado em que ficou o veículo e vítimas, para uma perícia técnica, e tentarem identificá-los, ambos, criminoso e vítima, foram retirados do local, como fardos de lixo, rebolados num rabecão, e levados a um hospital (nem levaram ao IML). Lá chegando, já foram apresentando a clássica versão: meliantes mortos em troca de tiros.
Como a vitima tinha se comunicado com o cônjuge nos instantes iniciais do roubo, essa versão foi refutada de modo absoluto em poucas horas.
Quais as providências que o caso teve por parte das autoridades superiores do Rio de Janeiro? Os policiais militares foram elogiados, pela pronta ação, escusando-se-lhes de qualquer responsabilidade, sendo a inditosa vítima um efeito colateral, naquilo que o governador e seu secretário de segurança definem como uma política de segurança eficaz, de combate à criminalidade, onde, se houver necessidade, o confronto ocorrerá.
Contudo, tais confrontos não têm tido o resultado que a sociedade espera e almeja, isto é, a sua segurança e proteção, por que o crime recrudesce em intensidade e os agentes de segurança passam a ser causa de mortes ou lesões incapacitantes.
CONCLUSÃO
A segurança pública que precisamos é aquela que seja realizada dentro das normas legais, destinadas a garantir a incolumidade de todos, sem distinção entre cidadãos de bem e malfeitores, onde os agentes – policiais militares e civis – sejam preparados, treinados e capazes para isso.
Onde as abordagens de qualquer pessoa, desarmada ou armada, priorize a captura para esclarecer os fatos e garantir uma ação do judiciário, na qual a atuação policial e o processo penal tenham todas as garantias de respeito à dignidade da pessoa humana, dos princípios da legalidade, publicidade, moralidade, ampla defesa, contraditório e decisão fundamentada e justa.
Haverá confrontos, infelizmente, nos quais o policial militar terá, e deverá reagir, sim, mas no interesse da sociedade, e para isso, deverá estar bem treinado para que seus disparos sejam eficazes e causem o dano imprescindível e absolutamente necessário, sem que outros Joãos venham a ser vitimados, perdidos para sempre do convívio familiar, onde só o pranto e a revolta contra a polícia militar lembram sua morte.