2 de abril de 2011

Um terremoto, alguns ditadores e o Brasil

Geraldo Filho
Artigo de autoria de Geraldo Filho - Sociólogo, Bchl e MSc: professor do CMRV/UFPI

O que haveria em comum entre o terremoto que arrasou o Japão (março/2011), os ditadores muçulmanos do oriente médio e norte da África e o Brasil, da Lei da Ficha Limpa, que procurava moralizar as eleições de 2010? A vanidade tragicômica dos desejos humanos, que são veiculados através dos sentidos (significações imaginárias) concedidos a cada um desses acontecimentos.

Os japoneses estavam preparados, sob o ponto de vista da arquitetura e da engenharia; dos sistemas de alarme e socorro de emergência; do treinamento da população para evacuação e procura de abrigos; do comportamento estóico (auto-controle) diante de tragédias... para uma catástrofe sísmica de até 8,5 graus na Escala Richster (escala que mede a magnitude de terremotos). É como se até aquele grau, apesar dos efeitos colaterais possíveis como tsunamis (ondas gigantes), o mundo a sua volta ainda estivesse sob controle, afinal tudo havia sido previamente previsto e mensurado, portanto, tudo dentro do contexto de sentidos construído pelo imaginário da sociedade japonesa.

No entanto, o imponderável pulverizou a sensação de segurança e estabilidade fornecida pelo sentido de organização e controle da natureza. Caprichosamente, o terremoto foi classificado e reclassificado para 8,8; 8,9 e, finalmente, 9,0 graus, desencadeando uma força destruidora nunca presenciada por uma sociedade complexa. Além das perdas materiais e humanas, solapou a crença em algumas das significações centrais da modernidade, tão apreciadas pelos japoneses: ciência, tecnologia e progresso, ao lembrá-los da insignificância dos humanos. Cabe citar Karl Marx, em um momento raro de lucidez intelectual: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar!”.

Em outra parte do planeta, mais um conjunto de sentidos (significações imaginárias), que estruturava a vida de milhões de pessoas, também começou a ruir. Entre os países de religião islâmica nenhum é economicamente desenvolvido, ou sequer é considerado emergente; nenhum aceita a liberdade de expressão do pensamento e da fé; todos são ditaduras seculares (militares ou reis) ou religiosas, que comandam estes países há décadas.

Porém, a humilhação de um pobre vendedor ambulante pela polícia corrupta, em uma cidade da Tunísia, foi a centelha do incêndio que varre a ordem estabelecida no oriente médio e norte da África. Possivelmente, milhões de indivíduos começaram a perceber que não há sentido algum em acreditar que o seu deus é o maior de todos, quando os deuses de outros povos são muito mais generosos com os seus; que não há razão em crer em um bando de velhos fantasiados com roupas ridículas, metem o nariz em tudo o que eles fazem, regulando do sexo a política; em aceitar que os seus tiranos nadem em rios de dinheiro, na maior parte resultado da renda do petróleo, enquanto eles, a patuléia, patinam na pobreza.

Até aonde essa reestruturação de sentidos vai chegar, é cedo para prever! Lembrando o velho mestre e criador da sociologia científica Émile Durkheim, diria que aqueles povos vivem um momento de anomia: falta de normas e regras que orientam a vida de uma pessoa ou sociedade. Em uma tradução mais simples: perda de sentido do que antes era aceito e acreditado como verdade.

Já no Brasil, a significação participação política popular, tão necessária para a consolidação de uma democracia avançada, que poderia ter sido reforçada pelo Supremo Tribunal Federal ao validar a Lei da Ficha Limpa, para as eleições de 2010, mais uma vez foi desconstruída.

Ao negar a validade da Lei para 2010, instaura-se um vazio de impotência entre aqueles que lutaram para que a iniciativa popular efetivamente fosse a energia da política democrática.

O mais grave, ao postergar a validade da Lei para 2012, novas demandas judiciais que questionam a sua constitucionalidade serão impetradas, isto é, possivelmente ela será mutilada.

A justificativa para a não validação da Lei é uma tecnicalidade constitucional: o princípio da temporalidade. Alega-se que como a Lei foi promulgada no ano do pleito eleitoral, ela só teria vigência no pleito seguinte, pois nenhuma regra que o altere pode entrar em vigor um ano antes de sua realização.

A questão que se coloca é: o que vale mais?! O princípio da temporalidade ou o da moralidade?! Uma vez que também este último é resguardado pela constituição, sobretudo para aqueles que servirão o Estado como funcionários ou detentores de cargos eletivos.

A Lei não alterava nenhuma regra eleitoral. Ela apenas protegia, por iniciativa popular, a própria sociedade e o Estado que a ela representa de indivíduos condenados pela justiça em 2ª instância. Não modificava regras de convenção partidária, coligação de partidos ou tipo de voto (proporcional ou distrital).

No entanto, a significação participação popular mais uma vez foi desprezada. No Brasil, isto não é novidade! Retrocedam comigo no tempo para 15 de novembro de 1889. Vocês acham que a população do Rio de Janeiro sabia que Deodoro estava proclamando a república?! Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, o embaixador francês à época presenciou a proclamação e teria dito: A república foi proclamada, mas faltou um ator importante, o povo, que a tudo assistiu bestializado, sem entender o que estava acontecendo.