Artigo de autoria de Geraldo Filho - Sociólogo, Bchl e MSc: professor do CMRV/UFPI
As teorias que formam as ciências sociais, e as ciências afins (ciências humanas e as aplicadas), que estudam o ser humano na sociedade, precisam de profunda revisão, honesta e de espírito aberto, para que possam continuar a ter consistência e coerência com a realidade.
Alguns amigos podem objetar essa necessidade argumentando que o embate das teorias, feito em livros, artigos ou congressos, cumpriria o papel de revisão teórica, ao depurá-las e atualizá-las. Porém, na prática, isso não é verdade e também não é suficiente.
Não é verdade porque nas universidades brasileiras a ciência vira tradição, o que é uma contradição em si mesmo, visto que a ciência é essencialmente progressiva, sendo avessa a tudo que lhe impeça o caminho para a evolução.
No entanto, quanto a esse aspecto, encontram-se verdadeiras tiranias acadêmicas, exercidas por professores orientadores de trabalhos científicos nos vários níveis, desde os trabalhos finais de curso de graduação até os doutorados. Os alunos são “orientados” a ler apenas os autores e teóricos que os professores conhecem, perpetuando, a-criticamente, idéias que passam geração após geração de “intelectuais”, que repetirão as mesmas análises, sem nenhum esforço de adaptação ao tempo e ao espaço, que os contextos históricos implicam.
Não é difícil encontrar alunos de graduação e pós-graduação defendendo idéias do séc. XIX no séc. XXI, como se o mundo não houvesse se transformado nos 200 anos de revolução industrial; ou fazendo análises elaboradas para outras sociedades, que viviam noutra trajetória civilizatória (como Europa e Estados Unidos, depois das Grandes Guerras) no Brasil de agora (que só começou a se “desenvolver” de fato, crescer com distribuição de renda, há 16 anos).
Também não é suficiente a publicação de livros, artigos ou a realização de congressos como exercício de renovação das teorias porque, mais uma vez, os cânones (normas) do pensamento perfilhados pelas tradições universitárias inibem e dificultam a aventura de explorar domínios desconhecidos da ciência, principalmente em outras áreas que não sejam a de origem do cientista. Por exemplo, um cientista social estudar neurociência.
Gustavo Ioschpe, economista, em artigo recente (Veja, 14/04/10), mostrou como o Brasil travará o processo de desenvolvimento econômico iniciado com o Plano Real, no governo Fernando Henrique Cardoso, caso não seja capaz de fazer evoluir, simultaneamente, o capital humano, o que significa dizer, romper com tradições acadêmicas encasteladas na educação brasileira há décadas e que estão completamente alheias à realidade.
Para ilustrar esses argumentos, atentem para as explicações e soluções dadas para a violência criminal no Brasil. Geralmente, esgotam-se na identificação das condições sócio-econômicas e na promoção da justiça social e dos direitos humanos dos criminosos, o que, na maioria das vezes, influencia a avaliação do judiciário e a formulação de leis punitivas, tornando-as complacentes diante das barbaridades anti-humanas cometidas contra as vítimas.
Surpreendentemente, um membro do judiciário refletiu abertamente essa situação injusta, desrespeitosa e desumana para com as vítimas, ao comentar o caso do psicopata pedófilo de Luziânia (GO). Segundo a promotora Maria José Miranda (Veja, 21/04/10): “Os principais problemas são os erros crônicos do poder público quanto à segurança do cidadão de bem (...) A nossa jurisprudência favorece muito o criminoso, em detrimento da sociedade ordeira.” “Nós temos dois Brasis. Um de mentirinha, de faz de conta, que é o Brasil do papel, onde o homicídio qualificado pode render pena de até trinta anos. Outro, o Brasil real, muito diferente, onde alguém é condenado a trinta anos e cumpre um sexto, fica só cinco anos na cadeia.” “No Brasil, a jurisprudência é favorável ao réu e as vítimas ficam ao deus-dará. Se a Constituição pesasse 1 quilo, 900 gramas seriam de direito dos réus. Para eles existem direitos humanos, assistência jurídica gratuita, Pastoral Carcerária, Anistia Internacional, auxílio-reclusão. (...) Mas escuta, e as vítimas? Elas não têm direito à nada?”
Ante esse poderoso depoimento da promotora, cabe indagar à “tradição acadêmica” que respalda essa realidade descrita, se não seria razoável desconfiar de que algo está absurdamente errado (Cornelius Castoriadis chamaria isto de uma “absurdidade”)?! Se não há uma brutal desvinculação do judiciário e das leis em relação à vida comum dos brasileiros.
Continuar a reproduzir a análise que justifica o crime como conseqüência das condições sócio-econômicas do criminoso é fechar os olhos para o mundo ao redor, é alienação geral!
Outra interpretação para o mesmo fenômeno, violência criminal e o isolamento do judiciário e das leis da realidade, pode ser encontrada em outra área da ciência.
O neurologista Antônio Damásio, estudando os efeitos que uma lesão cerebral pode ocasionar no sistema de raciocínio de um adulto normal, chegou à conclusão de que também os efeitos de uma “cultura doentia” podem ser devastadores para uma sociedade, ao deteriorar (dessensibilizar), pela repetição incessante de idéias demagógicas e anticientíficas, a capacidade de indignação e revolta das pessoas ante o sofrimento das vítimas. Segundo ele: “Na Alemanha e na União Soviética durante os anos 30 e 40, na China durante a Revolução Cultural (anos 60) e no Camboja (anos 70) durante o regime de Pol Pot (eu acrescentaria para hoje Cuba, Venezuela, Irã, etc.) (...) uma cultura doentia predominou sobre a maquinaria normal da razão, com conseqüências desastrosas. Receio que grandes setores da sociedade ocidental estejam gradualmente transformando-se em outros exemplos trágicos”
O receio alarmante de Antônio Damásio é amplamente justificável para o fenômeno da violência criminal no Brasil, sendo válido também para a educação e a política. Uma cultura jurídica e legal doentia institucionalizou-se, pela repetição a-crítica de idéias demagógicas, e corroeu, progressivamente, a capacidade dos indivíduos de sentirem a dor daqueles que foram vítimas de crimes monstruosos e dos seus familiares e entes queridos.
As cenas de emoção na frente de delegacias, fóruns, hospitais, cemitérios ou palcos de tragédias, propagadas pelos telejornais, são efeitos de consciência coletiva, estimuladas pelas câmeras dos repórteres. Retirem os holofotes, cada qual sai discretamente (à francesa) para suas casas ou trabalho.
Após crimes contra crianças como João Hélio (RJ), Isabela Nardoni (SP) e os seis adolescentes de Luziânia (GO), houve, ou haverá, alguma mudança real na repressão ao crime, no ordenamento jurídico brasileiro, que efetivamente melhore a segurança dos cidadãos de bem?!
Não, pelo contrário, não há qualquer esperança. Observem, para finalizar, do que é capaz de fazer uma “cultura doente” à integridade racional/sensorial de indivíduos face ao sofrimento das vítimas de crimes:
- O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (2008-2010), provocado a se pronunciar sobre os crimes do pedófilo de Luziânia (GO), logo disse que não havia razões para a revisão das leis, até porque isso é muito difícil, o que aconteceu foi apenas erro do judiciário, que soltou o pedófilo.
- O ministério público de Goiás, indignado, quer saber as reais condições do enforcamento na cadeia do pedófilo de Luziânia, pois o estado é responsável pela sua segurança e integridade, e talvez seja o caso de indenizar sua família.
As teorias que formam as ciências sociais, e as ciências afins (ciências humanas e as aplicadas), que estudam o ser humano na sociedade, precisam de profunda revisão, honesta e de espírito aberto, para que possam continuar a ter consistência e coerência com a realidade.
Alguns amigos podem objetar essa necessidade argumentando que o embate das teorias, feito em livros, artigos ou congressos, cumpriria o papel de revisão teórica, ao depurá-las e atualizá-las. Porém, na prática, isso não é verdade e também não é suficiente.
Não é verdade porque nas universidades brasileiras a ciência vira tradição, o que é uma contradição em si mesmo, visto que a ciência é essencialmente progressiva, sendo avessa a tudo que lhe impeça o caminho para a evolução.
No entanto, quanto a esse aspecto, encontram-se verdadeiras tiranias acadêmicas, exercidas por professores orientadores de trabalhos científicos nos vários níveis, desde os trabalhos finais de curso de graduação até os doutorados. Os alunos são “orientados” a ler apenas os autores e teóricos que os professores conhecem, perpetuando, a-criticamente, idéias que passam geração após geração de “intelectuais”, que repetirão as mesmas análises, sem nenhum esforço de adaptação ao tempo e ao espaço, que os contextos históricos implicam.
Não é difícil encontrar alunos de graduação e pós-graduação defendendo idéias do séc. XIX no séc. XXI, como se o mundo não houvesse se transformado nos 200 anos de revolução industrial; ou fazendo análises elaboradas para outras sociedades, que viviam noutra trajetória civilizatória (como Europa e Estados Unidos, depois das Grandes Guerras) no Brasil de agora (que só começou a se “desenvolver” de fato, crescer com distribuição de renda, há 16 anos).
Também não é suficiente a publicação de livros, artigos ou a realização de congressos como exercício de renovação das teorias porque, mais uma vez, os cânones (normas) do pensamento perfilhados pelas tradições universitárias inibem e dificultam a aventura de explorar domínios desconhecidos da ciência, principalmente em outras áreas que não sejam a de origem do cientista. Por exemplo, um cientista social estudar neurociência.
Gustavo Ioschpe, economista, em artigo recente (Veja, 14/04/10), mostrou como o Brasil travará o processo de desenvolvimento econômico iniciado com o Plano Real, no governo Fernando Henrique Cardoso, caso não seja capaz de fazer evoluir, simultaneamente, o capital humano, o que significa dizer, romper com tradições acadêmicas encasteladas na educação brasileira há décadas e que estão completamente alheias à realidade.
Para ilustrar esses argumentos, atentem para as explicações e soluções dadas para a violência criminal no Brasil. Geralmente, esgotam-se na identificação das condições sócio-econômicas e na promoção da justiça social e dos direitos humanos dos criminosos, o que, na maioria das vezes, influencia a avaliação do judiciário e a formulação de leis punitivas, tornando-as complacentes diante das barbaridades anti-humanas cometidas contra as vítimas.
Surpreendentemente, um membro do judiciário refletiu abertamente essa situação injusta, desrespeitosa e desumana para com as vítimas, ao comentar o caso do psicopata pedófilo de Luziânia (GO). Segundo a promotora Maria José Miranda (Veja, 21/04/10): “Os principais problemas são os erros crônicos do poder público quanto à segurança do cidadão de bem (...) A nossa jurisprudência favorece muito o criminoso, em detrimento da sociedade ordeira.” “Nós temos dois Brasis. Um de mentirinha, de faz de conta, que é o Brasil do papel, onde o homicídio qualificado pode render pena de até trinta anos. Outro, o Brasil real, muito diferente, onde alguém é condenado a trinta anos e cumpre um sexto, fica só cinco anos na cadeia.” “No Brasil, a jurisprudência é favorável ao réu e as vítimas ficam ao deus-dará. Se a Constituição pesasse 1 quilo, 900 gramas seriam de direito dos réus. Para eles existem direitos humanos, assistência jurídica gratuita, Pastoral Carcerária, Anistia Internacional, auxílio-reclusão. (...) Mas escuta, e as vítimas? Elas não têm direito à nada?”
Ante esse poderoso depoimento da promotora, cabe indagar à “tradição acadêmica” que respalda essa realidade descrita, se não seria razoável desconfiar de que algo está absurdamente errado (Cornelius Castoriadis chamaria isto de uma “absurdidade”)?! Se não há uma brutal desvinculação do judiciário e das leis em relação à vida comum dos brasileiros.
Continuar a reproduzir a análise que justifica o crime como conseqüência das condições sócio-econômicas do criminoso é fechar os olhos para o mundo ao redor, é alienação geral!
Outra interpretação para o mesmo fenômeno, violência criminal e o isolamento do judiciário e das leis da realidade, pode ser encontrada em outra área da ciência.
O neurologista Antônio Damásio, estudando os efeitos que uma lesão cerebral pode ocasionar no sistema de raciocínio de um adulto normal, chegou à conclusão de que também os efeitos de uma “cultura doentia” podem ser devastadores para uma sociedade, ao deteriorar (dessensibilizar), pela repetição incessante de idéias demagógicas e anticientíficas, a capacidade de indignação e revolta das pessoas ante o sofrimento das vítimas. Segundo ele: “Na Alemanha e na União Soviética durante os anos 30 e 40, na China durante a Revolução Cultural (anos 60) e no Camboja (anos 70) durante o regime de Pol Pot (eu acrescentaria para hoje Cuba, Venezuela, Irã, etc.) (...) uma cultura doentia predominou sobre a maquinaria normal da razão, com conseqüências desastrosas. Receio que grandes setores da sociedade ocidental estejam gradualmente transformando-se em outros exemplos trágicos”
O receio alarmante de Antônio Damásio é amplamente justificável para o fenômeno da violência criminal no Brasil, sendo válido também para a educação e a política. Uma cultura jurídica e legal doentia institucionalizou-se, pela repetição a-crítica de idéias demagógicas, e corroeu, progressivamente, a capacidade dos indivíduos de sentirem a dor daqueles que foram vítimas de crimes monstruosos e dos seus familiares e entes queridos.
As cenas de emoção na frente de delegacias, fóruns, hospitais, cemitérios ou palcos de tragédias, propagadas pelos telejornais, são efeitos de consciência coletiva, estimuladas pelas câmeras dos repórteres. Retirem os holofotes, cada qual sai discretamente (à francesa) para suas casas ou trabalho.
Após crimes contra crianças como João Hélio (RJ), Isabela Nardoni (SP) e os seis adolescentes de Luziânia (GO), houve, ou haverá, alguma mudança real na repressão ao crime, no ordenamento jurídico brasileiro, que efetivamente melhore a segurança dos cidadãos de bem?!
Não, pelo contrário, não há qualquer esperança. Observem, para finalizar, do que é capaz de fazer uma “cultura doente” à integridade racional/sensorial de indivíduos face ao sofrimento das vítimas de crimes:
- O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (2008-2010), provocado a se pronunciar sobre os crimes do pedófilo de Luziânia (GO), logo disse que não havia razões para a revisão das leis, até porque isso é muito difícil, o que aconteceu foi apenas erro do judiciário, que soltou o pedófilo.
- O ministério público de Goiás, indignado, quer saber as reais condições do enforcamento na cadeia do pedófilo de Luziânia, pois o estado é responsável pela sua segurança e integridade, e talvez seja o caso de indenizar sua família.