Artigo de autoria de
Geraldo Filho – Sociólogo, Bacharel e Mestre: professor do Campus
da UFPI de Parnaíba
*Esse texto é voltado
particularmente para profissionais de ciências sociais ou para quem
ministra disciplinas de ciências humanas em geral no ensino de todos
os níveis, no entanto, deve despertar o interesse de qualquer
curioso pelo estranho desejo de compreender o espírito humano.
1. Contexto histórico:
Esse artigo foi
desenvolvido como tarefa da disciplina Tópicos Avançados em Teoria
Sociológica, do Curso de Doutorado em Sociologia, da Universidade
Federal do Ceará, correspondendo a Unidade I, na qual se discutiu o
“estado da arte” das ciências sociais no mundo contemporâneo.
Os livros e artigos
trabalhados nessa etapa cobriram um período de 11 anos, em dois
séculos distintos, que começa com Em Defesa da Sociologia (livro de
Anthony Giddens, de 1996) e fecha com “Os desafios das Ciências
Sociais hoje” (artigo/conferência de Boaventura de Sousa Santos,
de 2007). Além desses, foram estudados “As Ciências Sociais e o
bug do milênio” (artigo/conferência de Elisa Reis, 1999), Nova
Luz sobre a Antropologia (livro de Clifford Geertz, de 2000) e
“Deslocando o ponto da crítica: indagações a partir de
realidades urbanas em mutação” (artigo de Vera Telles, de 2007).
Situar o contexto
histórico em que se realiza qualquer atividade humana é dever de
princípio para o cientista social, pois, para compreendê-la, é
necessário pelo menos ter uma idéia geral dos processos políticos,
econômicos, sócio-culturais, técnico-científicos e estéticos que
delineiam sua época. Portanto, aqui não seria diferente. Os autores
citados refletem, através de perspectivas teóricas distintas, sobre
a inserção das ciências sociais em um mundo de intensas e rápidas
transformações, que os levaram a interrogar sobre a capacidade
dessas ciências de acompanhá-las, o que as obriga a uma profunda
avaliação das teorias e métodos, seja com o objetivo de
atualizá-las; ou seja, no limite, e com coragem e honestidade
intelectual, com o objetivo de abandoná-las e abraçar novas
possibilidades interpretativas, ao se convencerem de que suas
maneiras de visualizar o mundo foram superadas.
Essa reflexão é que
unifica autores tão diferentes mas, por outro lado, me faz antever
também a célere aproximação das ciências sociais de uma
característica fundamental dos processos de trabalho capitalista: a
“destruição criativa”. Descrita pelo economista austríaco
Joseph Schumpeter, que significa revitalização constante dos
processos produtivos e das mercadorias em todos os setores da
economia. Mutatis mutandis, os cientistas sociais estariam
condenados, pela história do seu tempo, a permanente “reatualização”
das suas formas de pensar.
Fazia o Bacharelado em
Sociologia, na UFC, (84/88), quando o mundo vivia o avanço da
globalização (que eu prefiro denominar de “ocidentalização”)
comandada pela doutrina neoliberal, representada por Margareth
Thatcher e Ronald Reagan; a China tornava-se um gigante capitalista,
inspirada por Deng Xiaoping; a União Soviética tremia, com a
derrota na guerra contra o Afeganistão e os solavancos na Polônia,
provocados pelo “Solidariedade”, de Lech Walesa. Iniciava o
Mestrado em Sociologia, também na UFC, (1989), quando o Muro de
Berlim ruiu e, logo em seguida, em 1992, sob o comando de Mikhail
Gorbatchev, a União Soviética implodiu (glasnost e perestroika),
fragmentando-se em países independentes, como na configuração
geopolítica de antes de 1945.
Lembro-me de como
amigos de faculdade, muitos filiados a partidos de esquerda, ficaram
atônitos com a velocidade e a profundidade da sucessão dos
acontecimentos. Alguns deles, próximos a mim, confessavam que
estavam sem chão, pois haviam lhe puxado o tapete existencial!
De uma configuração
internacional bipolar, construída desde a Segunda Guerra, que opôs
o Bloco Capitalista (comandado pela superpotência Estados Unidos) ao
Bloco Socialista (comandado pela superpotência União Soviética), a
um mundo unipolar, depois de 1992, que foi saudado, precipitadamente,
por Francis Fukuyama, como o fim da história. Para esse autor, a
economia de livre mercado, as democracias representativas
pluripartidárias, os estados mínimos e de bem-estar social e os
direitos e liberdades individuais haviam demonstrado sua
superioridade como instituições sociais e políticas, capazes de
promover integralmente a felicidade humana onde quer que fossem
adotadas.
Com efeito, o mundo
encantava-se com as revoluções técnico-científicas. O processo de
integração dos mercados globais, por meio das supercadeias de
produção e do sistema financeiro (grandes conglomerados bancários),
era respaldado pela revolução dos sistemas de computação e
informação, da automação e robótica (nanotecnologias) e da
biotecnologia (engenharia genética).
Imaginava-se, para o
terceiro milênio que se aproximava, uma era de paz e prosperidade,
depois de um século marcado por catástrofes bélicas e experiências
políticas que mataram milhões. No entanto, a esperança rapidamente
feneceu, durou no mínimo 6 e no máximo 9 anos, a contar de 1992, o
que fez Fukuyama rever sua posição logo na primeira década do
século XXI e reconhecer o quão fora precipitado!
Em 1998, a Bolsa
NASDAQ, em Nova York, onde são negociadas as ações das empresas de
alta tecnologia em informação, abalou a confiança nas empresas
“ponto.com”, pois estavam com suas ações supervalorizadas
artificialmente, o que não correspondia a sua real situação no
mercado “real” (físico). Esse mesmo padrão de crise sistêmica
se repetiria 10 anos depois, em 2008, só que no sistema financeiro e
imobiliário americano, e que em razão da integração virtual dos
mercados, desencadeou crise que se alastrou por todo o mundo, cujos
efeitos se fazem sentir ainda hoje.
Mas em 2001, com o
atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, a esperança de Fukuyama
se desfez por completo. Os Estados Unidos, ainda como única potência
hegemônica, assistiu seu poder ser contrastado pelo fundamentalismo
islâmico, que tem modelo organizacional no formato de rede, e faz
proselitismo usando redes sociais. Sem um exército convencional
inimigo para combater, os americanos reforçaram o controle do
petróleo com a Segunda Guerra do Iraque (2003) e lutaram,
simultaneamente, contra o Talibã e a Al-Qaeda, no Afeganistão
(2001). As duas guerras aumentaram o déficit fiscal do país, sua
economia cambaleou e arrastou o mundo para a crise em 2008.
Por outro lado, a
integração dos mercados, feita pelas cadeias de produção globais
e pelo sistema financeiro virtual, trouxe ganhos quantitativos e
qualitativos para países da periferia do capitalismo. Um traço em
comum entre esses países díspares, segundo Thomas Friedman, foi a
“medianização” de suas populações, o que significou a saída
de milhões de pessoas da situação de pobreza, fazendo com que a
maioria dos seus habitantes se tornasse classe média. Isso ocorreu
no Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, que formaram os
BRICS; mas também, Coréia do Sul, Hong Kong, Cingapura e Taiwan, os
chamados Tigres Asiáticos.
Em razão do tamanho do
mercado da China, e do seu tipo de Estado (uma ditadura política
combinada com mercado livre), esse país deslocou parte substancial
dos negócios do mundo para o extremo oriente. Com o potencial
atômico e militar que detém, tornou-se uma forte candidata a
disputar a hegemonia com os americanos. Brasil, Rússia, Índia e
África do Sul, além da Coréia do Sul, são, nos diferentes
contextos geopolíticos onde se localizam, potências regionais.
Foi no contexto dessas
transformações que os autores citados elaboraram suas reflexões,
procurando dar conta tanto das mudanças no âmbito das grandes
estruturas políticas e econômicas, tecendo uma análise
macro-sociológica e política; como também rastrear seus efeitos no
cotidiano comezinho das relações sociais, vividas pelos indivíduos
seja na família, nas igrejas, nas relações afetivas ou nas
expressões estéticas, tecendo uma análise micro-sociológica e
etnográfica dessas realidades.
2. Comentando os
autores:
No projeto de pesquisa
apresentado para o doutorado em Sociologia (2013/1), Sociobiologia:
na fronteira entre a Sociologia e a Neurociência/Biologia Evolutiva,
quando descrevi o objeto a ser trabalhado, fiz um breve histórico
das minhas inquietações sobre a defasagem dos profissionais de
ciências sociais em relação a outras ciências, que passaram a
concorrer na elaboração de análises sobre o comportamento. O
título do projeto sugere isso. Portanto, fiquei feliz quando a
Unidade I, de Tópicos Avançados em Teoria Sociológica, iniciou com
profunda avaliação sobre a inserção das ciências sociais na
contemporaneidade, pois além de me fornecer vasto material de
trabalho, sinalizou que minhas preocupações não eram infundadas.
Apresentarei
comentários sobre autores e respectivos textos adotados de acordo
com a cronologia de apresentação na sala de aula. Assim, Elisa
Reis, em “As Ciências Sociais e o bug do milênio” (1999),
aponta para as ameaças que as rápidas transformações impostas
pelo fenômeno globalização impõem a criatividade dos cientistas
sociais, sob pena de serem atropelados pelos fatos, segundo ela: “...
temos de nos reciclar rapidamente para reformular nossas questões de
investigação.” (REIS, 1999: p. 2)
Porém, além do
problema de sintonia entre ciências sociais e realidade em mutação
acelerada, a autora identifica outro: “... nossa auto-reflexividade
parece estar corroendo as próprias bases epistemológicas do que
fazemos.” (REIS, 1999: p. 2).
E conclui:
“... críticas à
ideologia modernizante têm sido feitas com certa economia de
recursos que hoje ameaça condenar as ciências sociais à
futilidade. Por outro lado, a defesa do conservadorismo intelectual
faz com que continuemos a formular velhas questões e ignoremos
muitas das novas situações e problemas que a sociedade confronta. É
verdade que há questões eternas: justiça, igualdade, inclusão
versus exclusão... São questões cuja atualidade e relevância são
indiscutíveis. Mas, pensar o escopo delas da mesma forma que os
sociólogos clássicos o fizeram, ou até mesmo da maneira como nós
fomos treinados no passado, pode ser um anacronismo imperdoável.”
(REIS, 1999: p. 2)
O que Elisa Reis quer
demonstrar é que as ciências sociais ficaram aferradas às teorias
clássicas e suas interpretações, e com isso perderam o contato com
as aceleradas mudanças das instituições sociais, políticas e
econômicas à sua volta. Quando procuraram acompanhar os processos
de transformação que caracterizaram as últimas décadas do séc.
XX e o início do XXI parte delas enveredaram pelo caminho
irracionalista da crítica da modernidade, conhecida como
pós-modernidade, segundo a qual o iluminismo modernizante (expresso
pelas grandes narrativas cientificas e filosóficas sobre o destino
da humanidade) não cumpriu as promessas de liberdade e justiça
social inerentes a esse projeto civilizatório, legitimado pelos
valores da individualidade, autonomia da razão e universalidade.
Segundo Elisa Reis:
“Enquanto as demais
ciências seguem o caminho progressivo e levam à frente o ideal
modernizante, as ciências sociais parecem mergulhar em uma crise de
autoconfiança. Os ideais modernizantes tornaram-se alvo de crítica
feroz e, sem eles, os próprios críticos não sabem como legitimar
sua inserção como cientistas. (...) O chamado fim das grandes
narrativas – que, na verdade, se torna inteligível através de
alguma nova grande narrativa – deixa as ciências sociais sem
especificidade.” (REIS, 1999: p. 6)
O que sustenta minha
análise sobre a postura de Elisa Reis em relação à
pós-modernidade revela-se quando ela declara que “... se quisermos
preservar a especificidade do conhecimento científico diante de
outras formas de conhecimento, será impossível abrir mão do
recurso à razão, da busca da generalização e da aposta na
universalização.” (REIS, 1999: p 6)
Portanto, Elisa Reis
professa fé inabalável nos valores iluministas característicos da
modernidade, que devem ser radicalizados pelo que ela denomina de
“projeto modernizante e emancipacionista” das ciências sociais,
que tem como eixo fundamental o conceito de cidadania, com suas três
dimensões: civil, social e política.
Na contramão de Elisa
Reis, que pelo que foi exposto não abdica dos valores iluministas da
modernidade, encontra-se Boaventura de Sousa Santos. A despeito de
ele refletir também sobre as dificuldades de inserção das ciências
sociais no mundo globalizado, seu enfoque é radicalmente distinto.
Boaventura de Sousa
Santos acredita que sim, a modernidade foi superada, ela se desdobrou
numa nova realidade cuja complexidade exige o repensar das teorias e
conceitos das ciências sociais. Para tanto, ele parte da crítica da
modernidade e de suas raízes ocidentais, e de como essa origem
influenciou etnocentricamente o trabalho intelectual dos cientistas
sociais.
De acordo com o autor:
“(...) cada vez fica
mais claro que as teorias, os conceitos, as categorias que usamos nas
ciências sociais foram elaborados e desenvolvidos entre meados do
século XIX e meados do século XX em 4 ou 5 países: França,
Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. As teorias sociais,
as categorias e conceitos que utilizamos foram feitos baseados nas
experiências desses países. Todos os que estudamos nesses países
nos demos conta, quando regressamos aos nossos países, que as
categorias não se adequam à nossa realidade.” (SANTOS, 2007: p.
1)
Boaventura acredita que
isso decorreu dos conflitos inerentes a dois processos de
racionalização e conhecimento do mundo gerados no âmbito do
projeto civilizatório da modernidade: o de regulação (explicitados
pelo Estado, o mercado e a comunidade) e o de emancipação
(expressos pela racionalidade cognitiva instrumental da ciência, a
racionalidade da prática moral do direito e a racionalidade estética
da arte e da literatura).
Para Boaventura:
“(...) a modernidade
ocidental tinha essa dupla possibilidade de um conhecimento de
regulação e de conhecimento de emancipação, mas ocorreu que a
modernidade simplesmente se transformou em capitalismo. Este
conhecimento de regulação passou a dominar totalmente e ao dominar
totalmente edificou, transformou, absorveu o conhecimento de
emancipação (...)”. (SANTOS, 2007: p. 2)
Segundo ele, para se
retomar o processo de emancipação proposto pela modernidade é
necessário fazer a crítica do conhecimento produzido pela ciência
ocidental, que está condicionado pelo que denomina de
“monoculturas”, das quais destaco as mais importantes.
A primeira é a idéia
de que só é válido o conhecimento científico e de que todos os
outros conhecimentos não são válidos; a segunda é a idéia da
produtividade capitalista, ou seja, tudo tem que ser avaliado como
produtivo, dentro de um ciclo de produção que se aplica ao homem e
a natureza.
O conhecimento
produzido sob essas “monoculturas” condicionantes gera um
pensamento que Boaventura designa como “abismal” (melhor seria
“abissal”), pois desumaniza o “outro” (qualquer que ele
seja), ao defini-lo como objeto de estudo, sem “voz”, sobre o
qual será construído um discurso científico a partir de paradigmas
teóricos e conceituais ocidentais, que termina por preparar o
caminho para a dominação política e econômica do capitalismo.
Para se contrapor a
esse pensamento “abissal” e superá-lo, Boaventura propõe a
construção de um pensamento “pausalizado”. Aqui começa a ficar
clara a diferença de posturas teóricas quanto à modernidade e à
pós-modernidade entre esse autor e Elisa Reis. Boaventura não
assume a crítica fácil dos pós-modernos às grandes narrativas da
ciência e da filosofia, que tem como objetivo desconstruir seu
etnocentrismo ocidental; mas, na mesma tendência dos autores
pós-modernos, comunga com eles no que diz respeito à validade de
outras formas de conhecimento para além daquele produzido pela
ciência.
Segundo o autor:
“O pensamento
pausalizado que eu lhes proponho é o que eu chamo a ecologia dos
saberes. Vou lhes dar rapidamente algumas idéias do que é o
pensamento pós abismal, o pensamento ecológico. É ecológico na
forma em que tenta a coexistência de diferentes conhecimentos; é a
idéia de que conhecimentos heterogêneos podem coexistir. (...) A
idéia da ecologia de saberes pressupõe a inesgotável diversidade
epistemológica do mundo, há muitos conhecimentos no mundo e não é
possível a matéria completa de todos os conhecimentos, temos que
viver por completo.” (SANTOS, 2007: p. 6)
Boaventura instaura
dois tipos de racionalidade, uma que teria se desenvolvido com a
ciência e a filosofia ocidental; e outra(s) que seria(m) própria(s)
dos povos colonizados ou de povos não industrializados, do tipo
religiosa, mítica ou mágica. A partir daqui, o autor, que não é
um pós-moderno de primeira hora, absorve de vez a irracionalidade
pós-modernista. No desejo de criticar a ciência e a filosofia do
ocidente, ele afirma:
“A ciência é um
conhecimento muito importante, que produz coisas maravilhosas, mas
temos que fazer uso contrahegemônico da ciência. A ciência é útil
para certos objetivos, mas não para outros; a ciência tem que ser
utilizada dentro da ecologia de saberes como um saber entre outros,
mais valiosos para algumas coisas, menos para outras. É muito
valioso para ir à lua, mas não é tão valioso para defender a
diversidade.” (SANTOS, 2007: p. 6)
E continua, até o
final do texto, com o intento de desprestigiar o conhecimento
produzido pela racionalidade científica e filosófica ocidental, a
fazer afirmações de que existe uma pluralidade de epistemologias,
como a epistemologia feminista e a epistemologia poscolonial (mas não
explica o que vem a ser isso!) que demonstram como a ciência pode
ser feita de várias maneiras. Chega, a meu ver, ao ápice da
irracionalidade, ao citar um filósofo de Gana, que disse que não
poderia traduzir em sua língua a idéia de “existir” presente no
“penso, logo existo” de Descartes, pois “ser”, na sua língua,
é sempre “ser” aqui ou ali, mas que isso não era prova de
inferioridade da filosofia do seu povo, pois segundo ele, haveria
“coisas” da sua filosofia que não poderiam ser traduzidas para a
filosofia ocidental. Assim, Boaventura conclui: “A questão é que
alguns destes conceitos não podem ser traduzidos para línguas
ocidentais. Então a filosofia ocidental está limitada (...).”
(SANTOS, 2007: p. 7-8)
O contraste com Elisa
Reis é evidente! Pois como ela já enfatizou antes, para se manter a
especificidade do conhecimento científico diante de outras formas de
conhecimento, não se pode abrir mão do recurso à razão, à
generalização e à possibilidade de universalização. Pois, o que
na verdade existe, são “níveis diferentes de complexidade
racional” em culturas diferentes e não “racionalidades
diferentes”. O fato de a ciência ocidental reconhecer e proclamar
essa complexidade implica na compreensão e aceitação da
diversidade de sociedades.
Assim, tenho
dificuldades de concordar com Boaventura de Souza Santos, que
professa ser o pensamento científico ocidental incapaz de
compreender as racionalizações das culturas africanas, que ele toma
como parâmetro de análise. Por exemplo, se um menino de uma tribo
africana qualquer, acredita que uma lasca de madeira entrou no seu
pé, como conseqüência de uma artimanha de bruxaria, isso é apenas
uma maneira de ele racionalizar (com os códigos lingüísticos de
sua cultura) e explicar (causa e efeito) o fato de ter ocorrido
aquele acidente.
Ou então, se um
filósofo africano diz que não pode traduzir para sua língua o
conceito de individualidade, típico do pensamento ocidental, desde
os gregos, porque, segundo ele, na sua tribo, o indivíduo é um ser
a cada momento, isso, para mim, nada tem de misterioso ou
intraduzível no âmbito dos cânones da filosofia ou ciência
ocidental. Quem conhece um pouco de física quântica, mesmo
amadoristicamente, sabe que no mundo das subpartículas atômicas,
elas são “uma coisa” a cada momento, em um instante comportam-se
como energia pura mas não “são”, depois são matéria mas não
“são”, convertem-se permanentemente “uma na outra”. São
chamadas subpartículas por que não se consegue encontrar um
significante que consiga veicular esse estado de permanente
indeterminação que ocorre no mundo do “infinitamente pequeno”.
Portanto, para mim, não há nenhuma dificuldade em entender e
traduzir o filósofo de Gana.
No livro Nova Luz sobre
a Antropologia, Clifford Geertz, faz reflexão contundente sobre as
grandes transformações ocorridas depois do fim da bipolaridade
geopolítica constituída após a Segunda Guerra. Segundo ele:
“(...) a mudança
mais fatídica talvez seja, mais uma vez, o esgarçamento
generalizado do mundo com que de repente nos vemos confrontados. O
esfacelamento de coesões maiores, ou que assim pareciam, em coesões
menores, ligadas entre si de maneira incerta, tornou extremamente
difícil relacionar as realidades locais com as globais (...)”
(GEERTZ, 2000: p. 193)
No entanto, diante do
desafio imposto por essas transformações, que conduziram ao chamado
“despedaçamento” ou “desmontagem” do mundo, Geertz não
renuncia às idéias e conceitos gerais e integradores que
caracterizaram as filosofias e as ciências sociais ao longo da
modernidade:
“(...) onde é que
esse despedaçamento – chamemo-lo de “desmontagem” – deixa os
grandes conceitos integradores e totalizantes que por tanto tempo nos
acostumamos a usar para organizar nossas idéias sobre a política
mundial e, em especial, sobre a semelhança e a diferença entre
povos, sociedades, Estados e culturas (...)? É preciso construir
algumas idéias gerais, novas ou recondicionadas, se quisermos
penetrar na luz ofuscante da nova heterogeneidade e dizer algo de
útil sobre suas formas e seu futuro.” (GEERTZ, 2000: p. 193-194)
Como Elisa Reis, Geertz
tem como foco de crítica os autores pós-modernos, pois: “Segundo
essa visão, a busca de padrões abrangentes deve ser simplesmente
abandonada, como um resto da busca antiquada do eterno, do real, do
essencial e do absoluto.” (GEERTZ, 2000: p. 194)
Para delimitar bem o
contraste dos pós-modernos com Elisa Reis e Geertz, reproduzo a
passagem do texto em que ele apresenta, sucintamente, a proposta
pós-modernista:
“Não existem,
segundo se afirma, narrativas mestras sobre a “identidade”, a
“tradição”, a “cultura” ou qualquer outra coisa. Há apenas
acontecimentos, pessoas e fórmulas passageiras, e, mesmo assim,
incoerentes. Devemos contentar-nos com histórias divergentes em
idiomas irreconciliáveis, e não tentar abarcá-las em visões
sinópticas. Tais visões (segundo essa visão) são impossíveis de
obter. Tentar obtê-las leva apenas à ilusão – ao estereótipo,
ao preconceito, ao ressentimento e ao conflito.” (GEERTZ, 2000: p.
194)
Geertz, porém, também
se opõe a propostas generalizantes, que estariam na posição oposta
aos pós-modernos, representada pela teoria do “choque de
civilizações”, de Samuel Huntington: “(...) existem as
tentativas de não descartar como vazios e enganosos os conceitos de
larga escala, integradores e totalizantes, mas de substituí-los por
outros de escala ainda maior, mais integradores e mais totalizantes –
“civilizações”, ou seja lá o que for.” (GEERTZ, 2000: p.
194)
Em oposição às duas
propostas apresentadas, e buscando dar conta do contexto do mundo “em
pedaços” que ele identificou e, que, exacerbou a tensão e a
integração entre realidades locais e globais e, ainda, o mais
importante, sem desconsiderar jamais os valores iluministas que
fundaram a modernidade, Geertz vislumbra os parâmetros que as
ciências sociais devem seguir, para continuar relevante como
ciência, nesse mundo fragmentado. Segundo ele:
“O que precisamos, ao
que parece, não é de idéias grandiosas nem de abandono completo
das idéias sintetizadoras. Precisamos é de modos de pensar que
sejam receptivos às particularidades, às individualidades, às
estranhezas, descontinuidades, contrastes e singularidades,
receptivos ao que Charles Taylor chamou de “diversidade profunda”,
uma pluralidade de maneiras de fazer parte e de ser, e que possam
extrair deles – dela – um sentimento de vinculação, de uma
vinculação que não é abrangente nem uniforme, primordial nem
imutável, mas que, apesar disso, é real.” (GEERTZ, 2000: p. 196)
Escrito em 1996, Em
Defesa da Sociologia, de Anthony Giddens, dialoga inicialmente com o
sociólogo americano Irving Louis Horowitz sobre as dificuldades da
sociologia no mundo contemporâneo, nas últimas três décadas do
século XX. Para Horowitz, a sociologia, pelo menos nos Estados
Unidos, entrou em processo de “decomposição”, assumindo na
prática aquilo que lhe era imputada pelos seus críticos, que diziam
que ela não tinha um “ponto de vista global”. Assim, a partir
dos anos 70, segundo Horowitz, a sociologia assumiu mesmo essa
postura:
“A matéria vem se
tornando a morada dos descontentes, um ponto de encontro de grupos
com assuntos específicos em pauta, que vão desde defensores dos
direitos dos homossexuais até simpatizantes da teologia da
libertação. A sociologia está em decomposição porque vem se
transformando justamente naquilo que seus críticos sempre disseram a
seu respeito, isto é, uma pseudociência (...)” (GIDDENS, 1996: p.
13)
Giddens, ainda no
livro, cita a crítica de outro americano, William Julius Wilson, que
corrobora Horowitz: “(...) a sociologia passou a dissociar-se
demais de questões de interesse público e deveria concentrar a
atenção em assuntos relacionados com a política prática.”
(GIDDENS, 1996: p. 13-14)
No entanto, Giddens
acredita que de fato a suposta “decomposição” é localizada,
conseqüência de características próprias das ciências sociais
nos Estados Unidos. Segundo ele:
“A sociologia
norte-americana parece ter se tornado excessivamente
profissionalizada, com grupos de pesquisa que se concentram em seu
segmento e detêm poucos conhecimentos ou demonstram pouco ou nenhum
interesse acerca das áreas de atuação dos demais. Todos os
envolvidos com sociologia nos Estados Unidos dispõem de um “campo”,
e a especialidade do sociólogo, seja ela qual for ou pareça ser,
define tal identidade com clareza. A quantofrenia grassa nos
departamentos de sociologia dos Estados Unidos. Para muitos, o que
não se consegue quantificar não se leva em conta. O resultado, para
dizer o mínimo, pode ser uma certa falta de criatividade.”
(GIDDENS, 1996: p. 13)
Por outro lado, ao
olhar para a sociologia que estava se fazendo na Europa, no mesmo
período em que Horowitz e Wilson analisavam a decadência nos
Estados Unidos, Giddens constata uma vitalidade revigorante. Para
ilustrar essa avaliação positiva, o que justifica o título do seu
livro, Em Defesa da Sociologia, Giddens afirma:
“A maior parte dos
debates que “fazem as manchetes” intelectuais de hoje, nas
ciências sociais e mesmo na área de humanidades, é dotada de forte
carga sociológica. Os autores da sociologia foram os pioneiros em
discussões sobre o pós-modernismo, a sociedade pós-industrial e da
informação, a globalização, a transformação da vida cotidiana,
do gênero e da sexualidade, a natureza mutável do trabalho e da
família, a “subclasse” e a família.” (GIDDENS, 1996: p. 18)
Portanto, comparando
Giddens com os autores apresentados e discutidos nesse trabalho, ele
não aparenta preocupação com o “estado da arte” das ciências
sociais, pelo menos não com a profundidade de Elisa Reis ou de
Clifford Geertz, que se batem contra o avanço da influência dos
pós-modernistas, que, segundo eles, acabam por levar a perda de
relevância à sociologia. Para Giddens, trabalhos que se orientam
por análises pós-modernistas, são irrelevantes, mesmo que tenham
tido algum mérito em chamar a atenção para algumas transformações
sociais e dilemas intelectuais no âmbito da modernidade.
No entanto, Giddens não
deixa de alertar a sociologia para que permaneça atenta às
transformações céleres das décadas que encerravam o século XX.
Vivendo numa Inglaterra que adentrou no mundo globalizado como uma
das lideranças, pelas mãos de Margareth Thatcher e John Majors,
conservadores chefes de governo, que cumpriram a agenda neoliberal de
reformar o estado de bem-estar social inglês e retomar o crescimento
e desenvolvimento de seu país, Giddens acompanhou os impactos que o
paroxismo da relação global/local causava na vida cotidiana das
pessoas, que sequer tinham consciência, ou eram capazes de
compreender, os processos sócio-econômico-culturais que as
atingiam. Assim:
“Mais do que qualquer
outra tarefa intelectual, a reflexão sociológica ocupa um papel
central para a compreensão das forças sociais que vêm
transformando nossa vida nos dias de hoje. A vida social tornou-se
episódica, fragmentária e marcada por novas incertezas, para cujo
entendimento deve contribuir o pensamento sociológico criativo.
(...) os sociólogos devem concentrar a atenção nas implicações
práticas, bem como nas que afetam o processo de elaboração de
políticas, das mudanças que atualmente vêm transformando a vida
social. Entretanto, a sociologia de fato tornar-se-ia fastidiosa e,
muito possivelmente, desagregada, caso não se preocupasse com as
questões de maior vulto.” (GIDDENS, 1996: p. 19)
Para Anthony Giddens, a
costura entre as preocupações macro-sociológicas e o
acompanhamento do cotidiano rotineiro da vida das pessoas deve ser
buscada de maneira incessante pelo sociólogo, assim a sociologia
poderá continuar a ser um centro unificador para onde convergem as
diversas ramificações da pesquisa social.
3. Considerações
Finais:
A crise vivida pelas
ciências sociais, como conseqüência das dificuldades encontradas
por suas teorias para acompanhar (muitas vezes tendo de se
reiventar!) as rápidas transformações, que nas últimas décadas o
mundo “globalizado” e ao mesmo tempo “despedaçado” lhes
impôs, não é propriedade exclusiva da nossa ciência!
Em ciências como a
astrofísica, a física e a química, comumente chamadas de “ciências
da natureza ou exatas”, por que matematizáveis e legitimadas pela
prova empírica, existem vários modelos explicativos para fenômenos
fundamentais para o entendimento do mundo.
Para exemplificar com a
astrofísica, o fenômeno conhecido como “a singularidade”, que
na verdade é a origem do universo (13,8 bilhões de anos), tem
vários modelos (teorias) explicativos que concorrem entre si pelo
privilégio de ser o mais exato. O modelo do “big bang” é apenas
o mais conhecido e divulgado, mas há outros como a teoria do
“multiverso”, ou a teoria das “supercordas” e, mesmo, por que
não, a teoria do “design inteligente” (criacionismo
sofisticado). No entanto, essas ciências convivem e avançam sem
grandes traumas com suas diferenças e dificuldades, sem apelar para
a irracionalidade de interpretações que corrompem a integridade
ontológica do seu objeto de pesquisa (para onde todas convergem,
pois é o seu chão comum), que nesse caso é a natureza indecifrável
do universo.
O que, a meu ver,
aprofundou a crise nas ciências sociais foi o abandono rápido do
grande projeto civilizatório da modernidade iluminista diante dos
seus primeiros graves revezes, como as duas grandes guerras mundiais
e as experiências totalitárias do século XX, de natureza política
(nazismo, fascismo, comunismo stalinista e maoísta) ou religiosa
(fundamentalismo muçulmano e o terrorismo); a mundialização da
degradação ecológica ou mesmo a anomia dos indivíduos
fragilizados ante a ditadura do mercado, que exacerba a competição
pela vida e o consumismo.
É contra esse abandono
precoce, perpetrado pelos autores pós-modernos, que serve como
antídoto salutar os trabalhos de Elisa Reis, Clifford Geertz e
Anthony Giddens, os três, convictos defensores da modernidade, o
que, em nenhum momento, os impediu de reconhecer a complexidade que
se abateu sobre nosso mundo, a partir das décadas finais do século
passado, e a nos exortar para o árduo trabalho de adaptar as
ferramentas teóricas e metodológicas das ciências sociais às
novas realidades criadas.
É necessário, pois,
ser razoável e generoso ao se avaliar o legado da modernidade, pois
se houve revezes, houve muito mais conquistas para os humanos que
vivem sob seu signo. Na minha memória, sobressai como exemplo a
liberdade de sexo e trabalho conquistada pelas mulheres, para mim, a
única revolução comportamental real na história rotineira dos
comportamentos sociais, sem precedentes em nenhuma sociedade do
passado, e isso só foi possível em um mundo onde as pessoas
passaram a ser vistas como “individualidades”, portadoras de uma
“racionalidade” que antes de diferenciá-las em primeiro lugar as
irmanavam e igualavam (“universalidade”).
Bibliografia:
FRIEDMAN, Thomas. O
mundo é plano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
GEERTZ, Clifford. Nova
luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GREENSPAN, Alan. A era
da turbulência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
GUIDDENS, Anthony. Em
defesa da Sociologia. Ensaios, interpretações e tréplicas. São
Paulo: Editora UNESP, 2001.
REIS, Elisa Pereira.
Ciências Sociais e o bug do milênio. In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Vol. 14, número 9, fevereiro de 1999.
SANTOS, Boaventura de
Sousa. Os desafios das Ciências Sociais hoje. In: Encarte Clacso. Le
Monde Diplomatique-Edição Brasil, 2009.