7 de junho de 2013

Sociologia e Modernidade


Artigo de autoria de Geraldo Filho – Sociólogo, Bacharel e Mestre: professor do Campus da UFPI de Parnaíba

*Esse texto é voltado particularmente para profissionais de ciências sociais ou para quem ministra disciplinas de ciências humanas em geral no ensino de todos os níveis, no entanto, deve despertar o interesse de qualquer curioso pelo estranho desejo de compreender o espírito humano.

1. Contexto histórico:

Esse artigo foi desenvolvido como tarefa da disciplina Tópicos Avançados em Teoria Sociológica, do Curso de Doutorado em Sociologia, da Universidade Federal do Ceará, correspondendo a Unidade I, na qual se discutiu o “estado da arte” das ciências sociais no mundo contemporâneo.

Os livros e artigos trabalhados nessa etapa cobriram um período de 11 anos, em dois séculos distintos, que começa com Em Defesa da Sociologia (livro de Anthony Giddens, de 1996) e fecha com “Os desafios das Ciências Sociais hoje” (artigo/conferência de Boaventura de Sousa Santos, de 2007). Além desses, foram estudados “As Ciências Sociais e o bug do milênio” (artigo/conferência de Elisa Reis, 1999), Nova Luz sobre a Antropologia (livro de Clifford Geertz, de 2000) e “Deslocando o ponto da crítica: indagações a partir de realidades urbanas em mutação” (artigo de Vera Telles, de 2007).

Situar o contexto histórico em que se realiza qualquer atividade humana é dever de princípio para o cientista social, pois, para compreendê-la, é necessário pelo menos ter uma idéia geral dos processos políticos, econômicos, sócio-culturais, técnico-científicos e estéticos que delineiam sua época. Portanto, aqui não seria diferente. Os autores citados refletem, através de perspectivas teóricas distintas, sobre a inserção das ciências sociais em um mundo de intensas e rápidas transformações, que os levaram a interrogar sobre a capacidade dessas ciências de acompanhá-las, o que as obriga a uma profunda avaliação das teorias e métodos, seja com o objetivo de atualizá-las; ou seja, no limite, e com coragem e honestidade intelectual, com o objetivo de abandoná-las e abraçar novas possibilidades interpretativas, ao se convencerem de que suas maneiras de visualizar o mundo foram superadas.

Essa reflexão é que unifica autores tão diferentes mas, por outro lado, me faz antever também a célere aproximação das ciências sociais de uma característica fundamental dos processos de trabalho capitalista: a “destruição criativa”. Descrita pelo economista austríaco Joseph Schumpeter, que significa revitalização constante dos processos produtivos e das mercadorias em todos os setores da economia. Mutatis mutandis, os cientistas sociais estariam condenados, pela história do seu tempo, a permanente “reatualização” das suas formas de pensar.

Fazia o Bacharelado em Sociologia, na UFC, (84/88), quando o mundo vivia o avanço da globalização (que eu prefiro denominar de “ocidentalização”) comandada pela doutrina neoliberal, representada por Margareth Thatcher e Ronald Reagan; a China tornava-se um gigante capitalista, inspirada por Deng Xiaoping; a União Soviética tremia, com a derrota na guerra contra o Afeganistão e os solavancos na Polônia, provocados pelo “Solidariedade”, de Lech Walesa. Iniciava o Mestrado em Sociologia, também na UFC, (1989), quando o Muro de Berlim ruiu e, logo em seguida, em 1992, sob o comando de Mikhail Gorbatchev, a União Soviética implodiu (glasnost e perestroika), fragmentando-se em países independentes, como na configuração geopolítica de antes de 1945.

Lembro-me de como amigos de faculdade, muitos filiados a partidos de esquerda, ficaram atônitos com a velocidade e a profundidade da sucessão dos acontecimentos. Alguns deles, próximos a mim, confessavam que estavam sem chão, pois haviam lhe puxado o tapete existencial!

De uma configuração internacional bipolar, construída desde a Segunda Guerra, que opôs o Bloco Capitalista (comandado pela superpotência Estados Unidos) ao Bloco Socialista (comandado pela superpotência União Soviética), a um mundo unipolar, depois de 1992, que foi saudado, precipitadamente, por Francis Fukuyama, como o fim da história. Para esse autor, a economia de livre mercado, as democracias representativas pluripartidárias, os estados mínimos e de bem-estar social e os direitos e liberdades individuais haviam demonstrado sua superioridade como instituições sociais e políticas, capazes de promover integralmente a felicidade humana onde quer que fossem adotadas.

Com efeito, o mundo encantava-se com as revoluções técnico-científicas. O processo de integração dos mercados globais, por meio das supercadeias de produção e do sistema financeiro (grandes conglomerados bancários), era respaldado pela revolução dos sistemas de computação e informação, da automação e robótica (nanotecnologias) e da biotecnologia (engenharia genética).

Imaginava-se, para o terceiro milênio que se aproximava, uma era de paz e prosperidade, depois de um século marcado por catástrofes bélicas e experiências políticas que mataram milhões. No entanto, a esperança rapidamente feneceu, durou no mínimo 6 e no máximo 9 anos, a contar de 1992, o que fez Fukuyama rever sua posição logo na primeira década do século XXI e reconhecer o quão fora precipitado!

Em 1998, a Bolsa NASDAQ, em Nova York, onde são negociadas as ações das empresas de alta tecnologia em informação, abalou a confiança nas empresas “ponto.com”, pois estavam com suas ações supervalorizadas artificialmente, o que não correspondia a sua real situação no mercado “real” (físico). Esse mesmo padrão de crise sistêmica se repetiria 10 anos depois, em 2008, só que no sistema financeiro e imobiliário americano, e que em razão da integração virtual dos mercados, desencadeou crise que se alastrou por todo o mundo, cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje.

Mas em 2001, com o atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, a esperança de Fukuyama se desfez por completo. Os Estados Unidos, ainda como única potência hegemônica, assistiu seu poder ser contrastado pelo fundamentalismo islâmico, que tem modelo organizacional no formato de rede, e faz proselitismo usando redes sociais. Sem um exército convencional inimigo para combater, os americanos reforçaram o controle do petróleo com a Segunda Guerra do Iraque (2003) e lutaram, simultaneamente, contra o Talibã e a Al-Qaeda, no Afeganistão (2001). As duas guerras aumentaram o déficit fiscal do país, sua economia cambaleou e arrastou o mundo para a crise em 2008.

Por outro lado, a integração dos mercados, feita pelas cadeias de produção globais e pelo sistema financeiro virtual, trouxe ganhos quantitativos e qualitativos para países da periferia do capitalismo. Um traço em comum entre esses países díspares, segundo Thomas Friedman, foi a “medianização” de suas populações, o que significou a saída de milhões de pessoas da situação de pobreza, fazendo com que a maioria dos seus habitantes se tornasse classe média. Isso ocorreu no Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, que formaram os BRICS; mas também, Coréia do Sul, Hong Kong, Cingapura e Taiwan, os chamados Tigres Asiáticos.

Em razão do tamanho do mercado da China, e do seu tipo de Estado (uma ditadura política combinada com mercado livre), esse país deslocou parte substancial dos negócios do mundo para o extremo oriente. Com o potencial atômico e militar que detém, tornou-se uma forte candidata a disputar a hegemonia com os americanos. Brasil, Rússia, Índia e África do Sul, além da Coréia do Sul, são, nos diferentes contextos geopolíticos onde se localizam, potências regionais.

Foi no contexto dessas transformações que os autores citados elaboraram suas reflexões, procurando dar conta tanto das mudanças no âmbito das grandes estruturas políticas e econômicas, tecendo uma análise macro-sociológica e política; como também rastrear seus efeitos no cotidiano comezinho das relações sociais, vividas pelos indivíduos seja na família, nas igrejas, nas relações afetivas ou nas expressões estéticas, tecendo uma análise micro-sociológica e etnográfica dessas realidades.

2. Comentando os autores:

No projeto de pesquisa apresentado para o doutorado em Sociologia (2013/1), Sociobiologia: na fronteira entre a Sociologia e a Neurociência/Biologia Evolutiva, quando descrevi o objeto a ser trabalhado, fiz um breve histórico das minhas inquietações sobre a defasagem dos profissionais de ciências sociais em relação a outras ciências, que passaram a concorrer na elaboração de análises sobre o comportamento. O título do projeto sugere isso. Portanto, fiquei feliz quando a Unidade I, de Tópicos Avançados em Teoria Sociológica, iniciou com profunda avaliação sobre a inserção das ciências sociais na contemporaneidade, pois além de me fornecer vasto material de trabalho, sinalizou que minhas preocupações não eram infundadas.

Apresentarei comentários sobre autores e respectivos textos adotados de acordo com a cronologia de apresentação na sala de aula. Assim, Elisa Reis, em “As Ciências Sociais e o bug do milênio” (1999), aponta para as ameaças que as rápidas transformações impostas pelo fenômeno globalização impõem a criatividade dos cientistas sociais, sob pena de serem atropelados pelos fatos, segundo ela: “... temos de nos reciclar rapidamente para reformular nossas questões de investigação.” (REIS, 1999: p. 2)

Porém, além do problema de sintonia entre ciências sociais e realidade em mutação acelerada, a autora identifica outro: “... nossa auto-reflexividade parece estar corroendo as próprias bases epistemológicas do que fazemos.” (REIS, 1999: p. 2).

E conclui:

“... críticas à ideologia modernizante têm sido feitas com certa economia de recursos que hoje ameaça condenar as ciências sociais à futilidade. Por outro lado, a defesa do conservadorismo intelectual faz com que continuemos a formular velhas questões e ignoremos muitas das novas situações e problemas que a sociedade confronta. É verdade que há questões eternas: justiça, igualdade, inclusão versus exclusão... São questões cuja atualidade e relevância são indiscutíveis. Mas, pensar o escopo delas da mesma forma que os sociólogos clássicos o fizeram, ou até mesmo da maneira como nós fomos treinados no passado, pode ser um anacronismo imperdoável.” (REIS, 1999: p. 2)

O que Elisa Reis quer demonstrar é que as ciências sociais ficaram aferradas às teorias clássicas e suas interpretações, e com isso perderam o contato com as aceleradas mudanças das instituições sociais, políticas e econômicas à sua volta. Quando procuraram acompanhar os processos de transformação que caracterizaram as últimas décadas do séc. XX e o início do XXI parte delas enveredaram pelo caminho irracionalista da crítica da modernidade, conhecida como pós-modernidade, segundo a qual o iluminismo modernizante (expresso pelas grandes narrativas cientificas e filosóficas sobre o destino da humanidade) não cumpriu as promessas de liberdade e justiça social inerentes a esse projeto civilizatório, legitimado pelos valores da individualidade, autonomia da razão e universalidade. Segundo Elisa Reis:

“Enquanto as demais ciências seguem o caminho progressivo e levam à frente o ideal modernizante, as ciências sociais parecem mergulhar em uma crise de autoconfiança. Os ideais modernizantes tornaram-se alvo de crítica feroz e, sem eles, os próprios críticos não sabem como legitimar sua inserção como cientistas. (...) O chamado fim das grandes narrativas – que, na verdade, se torna inteligível através de alguma nova grande narrativa – deixa as ciências sociais sem especificidade.” (REIS, 1999: p. 6)

O que sustenta minha análise sobre a postura de Elisa Reis em relação à pós-modernidade revela-se quando ela declara que “... se quisermos preservar a especificidade do conhecimento científico diante de outras formas de conhecimento, será impossível abrir mão do recurso à razão, da busca da generalização e da aposta na universalização.” (REIS, 1999: p 6)

Portanto, Elisa Reis professa fé inabalável nos valores iluministas característicos da modernidade, que devem ser radicalizados pelo que ela denomina de “projeto modernizante e emancipacionista” das ciências sociais, que tem como eixo fundamental o conceito de cidadania, com suas três dimensões: civil, social e política.

Na contramão de Elisa Reis, que pelo que foi exposto não abdica dos valores iluministas da modernidade, encontra-se Boaventura de Sousa Santos. A despeito de ele refletir também sobre as dificuldades de inserção das ciências sociais no mundo globalizado, seu enfoque é radicalmente distinto.

Boaventura de Sousa Santos acredita que sim, a modernidade foi superada, ela se desdobrou numa nova realidade cuja complexidade exige o repensar das teorias e conceitos das ciências sociais. Para tanto, ele parte da crítica da modernidade e de suas raízes ocidentais, e de como essa origem influenciou etnocentricamente o trabalho intelectual dos cientistas sociais.

De acordo com o autor:

“(...) cada vez fica mais claro que as teorias, os conceitos, as categorias que usamos nas ciências sociais foram elaborados e desenvolvidos entre meados do século XIX e meados do século XX em 4 ou 5 países: França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. As teorias sociais, as categorias e conceitos que utilizamos foram feitos baseados nas experiências desses países. Todos os que estudamos nesses países nos demos conta, quando regressamos aos nossos países, que as categorias não se adequam à nossa realidade.” (SANTOS, 2007: p. 1)

Boaventura acredita que isso decorreu dos conflitos inerentes a dois processos de racionalização e conhecimento do mundo gerados no âmbito do projeto civilizatório da modernidade: o de regulação (explicitados pelo Estado, o mercado e a comunidade) e o de emancipação (expressos pela racionalidade cognitiva instrumental da ciência, a racionalidade da prática moral do direito e a racionalidade estética da arte e da literatura).
Para Boaventura:

“(...) a modernidade ocidental tinha essa dupla possibilidade de um conhecimento de regulação e de conhecimento de emancipação, mas ocorreu que a modernidade simplesmente se transformou em capitalismo. Este conhecimento de regulação passou a dominar totalmente e ao dominar totalmente edificou, transformou, absorveu o conhecimento de emancipação (...)”. (SANTOS, 2007: p. 2)

Segundo ele, para se retomar o processo de emancipação proposto pela modernidade é necessário fazer a crítica do conhecimento produzido pela ciência ocidental, que está condicionado pelo que denomina de “monoculturas”, das quais destaco as mais importantes.

A primeira é a idéia de que só é válido o conhecimento científico e de que todos os outros conhecimentos não são válidos; a segunda é a idéia da produtividade capitalista, ou seja, tudo tem que ser avaliado como produtivo, dentro de um ciclo de produção que se aplica ao homem e a natureza.

O conhecimento produzido sob essas “monoculturas” condicionantes gera um pensamento que Boaventura designa como “abismal” (melhor seria “abissal”), pois desumaniza o “outro” (qualquer que ele seja), ao defini-lo como objeto de estudo, sem “voz”, sobre o qual será construído um discurso científico a partir de paradigmas teóricos e conceituais ocidentais, que termina por preparar o caminho para a dominação política e econômica do capitalismo.

Para se contrapor a esse pensamento “abissal” e superá-lo, Boaventura propõe a construção de um pensamento “pausalizado”. Aqui começa a ficar clara a diferença de posturas teóricas quanto à modernidade e à pós-modernidade entre esse autor e Elisa Reis. Boaventura não assume a crítica fácil dos pós-modernos às grandes narrativas da ciência e da filosofia, que tem como objetivo desconstruir seu etnocentrismo ocidental; mas, na mesma tendência dos autores pós-modernos, comunga com eles no que diz respeito à validade de outras formas de conhecimento para além daquele produzido pela ciência.

Segundo o autor:

“O pensamento pausalizado que eu lhes proponho é o que eu chamo a ecologia dos saberes. Vou lhes dar rapidamente algumas idéias do que é o pensamento pós abismal, o pensamento ecológico. É ecológico na forma em que tenta a coexistência de diferentes conhecimentos; é a idéia de que conhecimentos heterogêneos podem coexistir. (...) A idéia da ecologia de saberes pressupõe a inesgotável diversidade epistemológica do mundo, há muitos conhecimentos no mundo e não é possível a matéria completa de todos os conhecimentos, temos que viver por completo.” (SANTOS, 2007: p. 6)

Boaventura instaura dois tipos de racionalidade, uma que teria se desenvolvido com a ciência e a filosofia ocidental; e outra(s) que seria(m) própria(s) dos povos colonizados ou de povos não industrializados, do tipo religiosa, mítica ou mágica. A partir daqui, o autor, que não é um pós-moderno de primeira hora, absorve de vez a irracionalidade pós-modernista. No desejo de criticar a ciência e a filosofia do ocidente, ele afirma:

“A ciência é um conhecimento muito importante, que produz coisas maravilhosas, mas temos que fazer uso contrahegemônico da ciência. A ciência é útil para certos objetivos, mas não para outros; a ciência tem que ser utilizada dentro da ecologia de saberes como um saber entre outros, mais valiosos para algumas coisas, menos para outras. É muito valioso para ir à lua, mas não é tão valioso para defender a diversidade.” (SANTOS, 2007: p. 6)

E continua, até o final do texto, com o intento de desprestigiar o conhecimento produzido pela racionalidade científica e filosófica ocidental, a fazer afirmações de que existe uma pluralidade de epistemologias, como a epistemologia feminista e a epistemologia poscolonial (mas não explica o que vem a ser isso!) que demonstram como a ciência pode ser feita de várias maneiras. Chega, a meu ver, ao ápice da irracionalidade, ao citar um filósofo de Gana, que disse que não poderia traduzir em sua língua a idéia de “existir” presente no “penso, logo existo” de Descartes, pois “ser”, na sua língua, é sempre “ser” aqui ou ali, mas que isso não era prova de inferioridade da filosofia do seu povo, pois segundo ele, haveria “coisas” da sua filosofia que não poderiam ser traduzidas para a filosofia ocidental. Assim, Boaventura conclui: “A questão é que alguns destes conceitos não podem ser traduzidos para línguas ocidentais. Então a filosofia ocidental está limitada (...).” (SANTOS, 2007: p. 7-8)

O contraste com Elisa Reis é evidente! Pois como ela já enfatizou antes, para se manter a especificidade do conhecimento científico diante de outras formas de conhecimento, não se pode abrir mão do recurso à razão, à generalização e à possibilidade de universalização. Pois, o que na verdade existe, são “níveis diferentes de complexidade racional” em culturas diferentes e não “racionalidades diferentes”. O fato de a ciência ocidental reconhecer e proclamar essa complexidade implica na compreensão e aceitação da diversidade de sociedades.

Assim, tenho dificuldades de concordar com Boaventura de Souza Santos, que professa ser o pensamento científico ocidental incapaz de compreender as racionalizações das culturas africanas, que ele toma como parâmetro de análise. Por exemplo, se um menino de uma tribo africana qualquer, acredita que uma lasca de madeira entrou no seu pé, como conseqüência de uma artimanha de bruxaria, isso é apenas uma maneira de ele racionalizar (com os códigos lingüísticos de sua cultura) e explicar (causa e efeito) o fato de ter ocorrido aquele acidente.

Ou então, se um filósofo africano diz que não pode traduzir para sua língua o conceito de individualidade, típico do pensamento ocidental, desde os gregos, porque, segundo ele, na sua tribo, o indivíduo é um ser a cada momento, isso, para mim, nada tem de misterioso ou intraduzível no âmbito dos cânones da filosofia ou ciência ocidental. Quem conhece um pouco de física quântica, mesmo amadoristicamente, sabe que no mundo das subpartículas atômicas, elas são “uma coisa” a cada momento, em um instante comportam-se como energia pura mas não “são”, depois são matéria mas não “são”, convertem-se permanentemente “uma na outra”. São chamadas subpartículas por que não se consegue encontrar um significante que consiga veicular esse estado de permanente indeterminação que ocorre no mundo do “infinitamente pequeno”. Portanto, para mim, não há nenhuma dificuldade em entender e traduzir o filósofo de Gana.

No livro Nova Luz sobre a Antropologia, Clifford Geertz, faz reflexão contundente sobre as grandes transformações ocorridas depois do fim da bipolaridade geopolítica constituída após a Segunda Guerra. Segundo ele:

“(...) a mudança mais fatídica talvez seja, mais uma vez, o esgarçamento generalizado do mundo com que de repente nos vemos confrontados. O esfacelamento de coesões maiores, ou que assim pareciam, em coesões menores, ligadas entre si de maneira incerta, tornou extremamente difícil relacionar as realidades locais com as globais (...)” (GEERTZ, 2000: p. 193)

No entanto, diante do desafio imposto por essas transformações, que conduziram ao chamado “despedaçamento” ou “desmontagem” do mundo, Geertz não renuncia às idéias e conceitos gerais e integradores que caracterizaram as filosofias e as ciências sociais ao longo da modernidade:

“(...) onde é que esse despedaçamento – chamemo-lo de “desmontagem” – deixa os grandes conceitos integradores e totalizantes que por tanto tempo nos acostumamos a usar para organizar nossas idéias sobre a política mundial e, em especial, sobre a semelhança e a diferença entre povos, sociedades, Estados e culturas (...)? É preciso construir algumas idéias gerais, novas ou recondicionadas, se quisermos penetrar na luz ofuscante da nova heterogeneidade e dizer algo de útil sobre suas formas e seu futuro.” (GEERTZ, 2000: p. 193-194)

Como Elisa Reis, Geertz tem como foco de crítica os autores pós-modernos, pois: “Segundo essa visão, a busca de padrões abrangentes deve ser simplesmente abandonada, como um resto da busca antiquada do eterno, do real, do essencial e do absoluto.” (GEERTZ, 2000: p. 194)

Para delimitar bem o contraste dos pós-modernos com Elisa Reis e Geertz, reproduzo a passagem do texto em que ele apresenta, sucintamente, a proposta pós-modernista:

“Não existem, segundo se afirma, narrativas mestras sobre a “identidade”, a “tradição”, a “cultura” ou qualquer outra coisa. Há apenas acontecimentos, pessoas e fórmulas passageiras, e, mesmo assim, incoerentes. Devemos contentar-nos com histórias divergentes em idiomas irreconciliáveis, e não tentar abarcá-las em visões sinópticas. Tais visões (segundo essa visão) são impossíveis de obter. Tentar obtê-las leva apenas à ilusão – ao estereótipo, ao preconceito, ao ressentimento e ao conflito.” (GEERTZ, 2000: p. 194)

Geertz, porém, também se opõe a propostas generalizantes, que estariam na posição oposta aos pós-modernos, representada pela teoria do “choque de civilizações”, de Samuel Huntington: “(...) existem as tentativas de não descartar como vazios e enganosos os conceitos de larga escala, integradores e totalizantes, mas de substituí-los por outros de escala ainda maior, mais integradores e mais totalizantes – “civilizações”, ou seja lá o que for.” (GEERTZ, 2000: p. 194)

Em oposição às duas propostas apresentadas, e buscando dar conta do contexto do mundo “em pedaços” que ele identificou e, que, exacerbou a tensão e a integração entre realidades locais e globais e, ainda, o mais importante, sem desconsiderar jamais os valores iluministas que fundaram a modernidade, Geertz vislumbra os parâmetros que as ciências sociais devem seguir, para continuar relevante como ciência, nesse mundo fragmentado. Segundo ele:

“O que precisamos, ao que parece, não é de idéias grandiosas nem de abandono completo das idéias sintetizadoras. Precisamos é de modos de pensar que sejam receptivos às particularidades, às individualidades, às estranhezas, descontinuidades, contrastes e singularidades, receptivos ao que Charles Taylor chamou de “diversidade profunda”, uma pluralidade de maneiras de fazer parte e de ser, e que possam extrair deles – dela – um sentimento de vinculação, de uma vinculação que não é abrangente nem uniforme, primordial nem imutável, mas que, apesar disso, é real.” (GEERTZ, 2000: p. 196)

Escrito em 1996, Em Defesa da Sociologia, de Anthony Giddens, dialoga inicialmente com o sociólogo americano Irving Louis Horowitz sobre as dificuldades da sociologia no mundo contemporâneo, nas últimas três décadas do século XX. Para Horowitz, a sociologia, pelo menos nos Estados Unidos, entrou em processo de “decomposição”, assumindo na prática aquilo que lhe era imputada pelos seus críticos, que diziam que ela não tinha um “ponto de vista global”. Assim, a partir dos anos 70, segundo Horowitz, a sociologia assumiu mesmo essa postura:

“A matéria vem se tornando a morada dos descontentes, um ponto de encontro de grupos com assuntos específicos em pauta, que vão desde defensores dos direitos dos homossexuais até simpatizantes da teologia da libertação. A sociologia está em decomposição porque vem se transformando justamente naquilo que seus críticos sempre disseram a seu respeito, isto é, uma pseudociência (...)” (GIDDENS, 1996: p. 13)

Giddens, ainda no livro, cita a crítica de outro americano, William Julius Wilson, que corrobora Horowitz: “(...) a sociologia passou a dissociar-se demais de questões de interesse público e deveria concentrar a atenção em assuntos relacionados com a política prática.” (GIDDENS, 1996: p. 13-14)

No entanto, Giddens acredita que de fato a suposta “decomposição” é localizada, conseqüência de características próprias das ciências sociais nos Estados Unidos. Segundo ele:

“A sociologia norte-americana parece ter se tornado excessivamente profissionalizada, com grupos de pesquisa que se concentram em seu segmento e detêm poucos conhecimentos ou demonstram pouco ou nenhum interesse acerca das áreas de atuação dos demais. Todos os envolvidos com sociologia nos Estados Unidos dispõem de um “campo”, e a especialidade do sociólogo, seja ela qual for ou pareça ser, define tal identidade com clareza. A quantofrenia grassa nos departamentos de sociologia dos Estados Unidos. Para muitos, o que não se consegue quantificar não se leva em conta. O resultado, para dizer o mínimo, pode ser uma certa falta de criatividade.” (GIDDENS, 1996: p. 13)

Por outro lado, ao olhar para a sociologia que estava se fazendo na Europa, no mesmo período em que Horowitz e Wilson analisavam a decadência nos Estados Unidos, Giddens constata uma vitalidade revigorante. Para ilustrar essa avaliação positiva, o que justifica o título do seu livro, Em Defesa da Sociologia, Giddens afirma:

“A maior parte dos debates que “fazem as manchetes” intelectuais de hoje, nas ciências sociais e mesmo na área de humanidades, é dotada de forte carga sociológica. Os autores da sociologia foram os pioneiros em discussões sobre o pós-modernismo, a sociedade pós-industrial e da informação, a globalização, a transformação da vida cotidiana, do gênero e da sexualidade, a natureza mutável do trabalho e da família, a “subclasse” e a família.” (GIDDENS, 1996: p. 18)

Portanto, comparando Giddens com os autores apresentados e discutidos nesse trabalho, ele não aparenta preocupação com o “estado da arte” das ciências sociais, pelo menos não com a profundidade de Elisa Reis ou de Clifford Geertz, que se batem contra o avanço da influência dos pós-modernistas, que, segundo eles, acabam por levar a perda de relevância à sociologia. Para Giddens, trabalhos que se orientam por análises pós-modernistas, são irrelevantes, mesmo que tenham tido algum mérito em chamar a atenção para algumas transformações sociais e dilemas intelectuais no âmbito da modernidade.

No entanto, Giddens não deixa de alertar a sociologia para que permaneça atenta às transformações céleres das décadas que encerravam o século XX. Vivendo numa Inglaterra que adentrou no mundo globalizado como uma das lideranças, pelas mãos de Margareth Thatcher e John Majors, conservadores chefes de governo, que cumpriram a agenda neoliberal de reformar o estado de bem-estar social inglês e retomar o crescimento e desenvolvimento de seu país, Giddens acompanhou os impactos que o paroxismo da relação global/local causava na vida cotidiana das pessoas, que sequer tinham consciência, ou eram capazes de compreender, os processos sócio-econômico-culturais que as atingiam. Assim:

“Mais do que qualquer outra tarefa intelectual, a reflexão sociológica ocupa um papel central para a compreensão das forças sociais que vêm transformando nossa vida nos dias de hoje. A vida social tornou-se episódica, fragmentária e marcada por novas incertezas, para cujo entendimento deve contribuir o pensamento sociológico criativo. (...) os sociólogos devem concentrar a atenção nas implicações práticas, bem como nas que afetam o processo de elaboração de políticas, das mudanças que atualmente vêm transformando a vida social. Entretanto, a sociologia de fato tornar-se-ia fastidiosa e, muito possivelmente, desagregada, caso não se preocupasse com as questões de maior vulto.” (GIDDENS, 1996: p. 19)

Para Anthony Giddens, a costura entre as preocupações macro-sociológicas e o acompanhamento do cotidiano rotineiro da vida das pessoas deve ser buscada de maneira incessante pelo sociólogo, assim a sociologia poderá continuar a ser um centro unificador para onde convergem as diversas ramificações da pesquisa social.

3. Considerações Finais:

A crise vivida pelas ciências sociais, como conseqüência das dificuldades encontradas por suas teorias para acompanhar (muitas vezes tendo de se reiventar!) as rápidas transformações, que nas últimas décadas o mundo “globalizado” e ao mesmo tempo “despedaçado” lhes impôs, não é propriedade exclusiva da nossa ciência!

Em ciências como a astrofísica, a física e a química, comumente chamadas de “ciências da natureza ou exatas”, por que matematizáveis e legitimadas pela prova empírica, existem vários modelos explicativos para fenômenos fundamentais para o entendimento do mundo.
Para exemplificar com a astrofísica, o fenômeno conhecido como “a singularidade”, que na verdade é a origem do universo (13,8 bilhões de anos), tem vários modelos (teorias) explicativos que concorrem entre si pelo privilégio de ser o mais exato. O modelo do “big bang” é apenas o mais conhecido e divulgado, mas há outros como a teoria do “multiverso”, ou a teoria das “supercordas” e, mesmo, por que não, a teoria do “design inteligente” (criacionismo sofisticado). No entanto, essas ciências convivem e avançam sem grandes traumas com suas diferenças e dificuldades, sem apelar para a irracionalidade de interpretações que corrompem a integridade ontológica do seu objeto de pesquisa (para onde todas convergem, pois é o seu chão comum), que nesse caso é a natureza indecifrável do universo.

O que, a meu ver, aprofundou a crise nas ciências sociais foi o abandono rápido do grande projeto civilizatório da modernidade iluminista diante dos seus primeiros graves revezes, como as duas grandes guerras mundiais e as experiências totalitárias do século XX, de natureza política (nazismo, fascismo, comunismo stalinista e maoísta) ou religiosa (fundamentalismo muçulmano e o terrorismo); a mundialização da degradação ecológica ou mesmo a anomia dos indivíduos fragilizados ante a ditadura do mercado, que exacerba a competição pela vida e o consumismo.

É contra esse abandono precoce, perpetrado pelos autores pós-modernos, que serve como antídoto salutar os trabalhos de Elisa Reis, Clifford Geertz e Anthony Giddens, os três, convictos defensores da modernidade, o que, em nenhum momento, os impediu de reconhecer a complexidade que se abateu sobre nosso mundo, a partir das décadas finais do século passado, e a nos exortar para o árduo trabalho de adaptar as ferramentas teóricas e metodológicas das ciências sociais às novas realidades criadas.

É necessário, pois, ser razoável e generoso ao se avaliar o legado da modernidade, pois se houve revezes, houve muito mais conquistas para os humanos que vivem sob seu signo. Na minha memória, sobressai como exemplo a liberdade de sexo e trabalho conquistada pelas mulheres, para mim, a única revolução comportamental real na história rotineira dos comportamentos sociais, sem precedentes em nenhuma sociedade do passado, e isso só foi possível em um mundo onde as pessoas passaram a ser vistas como “individualidades”, portadoras de uma “racionalidade” que antes de diferenciá-las em primeiro lugar as irmanavam e igualavam (“universalidade”).

Bibliografia:
FRIEDMAN, Thomas. O mundo é plano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
GREENSPAN, Alan. A era da turbulência. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
GUIDDENS, Anthony. Em defesa da Sociologia. Ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo: Editora UNESP, 2001.
REIS, Elisa Pereira. Ciências Sociais e o bug do milênio. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 14, número 9, fevereiro de 1999.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os desafios das Ciências Sociais hoje. In: Encarte Clacso. Le Monde Diplomatique-Edição Brasil, 2009.